27 de agosto de 2013

Dormindo no topo do Japão

Monte Fuji visto da quinta estação
Sou pequena, frágil, cheia das minhas frescuras e medos, não há quem diga que luto Taekwondo ou que gosto de me meter numas aventuras tenebrosas. Mas a verdade é que eu gosto, eu vou, me sujo, me machuco, me canso, me quebro, passo perrengue e tenho minhas histórias pra contar no fim. Já cruzei meio Japão de trem normal, numa viagem de 18hs, já fiz trilha de chinelo etc. Semana passada resolvi colocar mamãe de cabelo em pé (de novo) e fui sozinha escalar o Monte Fuji, o pico mais alto do Japão e também um vulcão ativo.

Existem vários relatos de como é a experiência de escalar o Fuji. Li muitos antes de ir, pra poder me preparar. Mas, sinceramente, nenhum deles conta exatamente como é a subida ou a descida. Nenhum deles consegue resumir exatamente o sentimento ou o que é necessário. No fim, concluí que nada como a experiência em si pra nos ensinar onde erramos e onde acertamos, que parte é simples e qual é a complicada. O que é possível e o que não é.

Depois de quase 3 anos e meio no Japão, minha última chance de escalar o Fuji foi agora. Todo ano, as trilhas e estações da montanha são abertas no verão, entre julho e agosto. Em geral, a temporada de escalada acontece entre a primeira semana de julho e o dia 31 de agosto. Algumas variações de dias podem acontecer, devido às condições climáticas, mas, resumindo bastante, temos esse intervalo de dois meses pra visitar o topo do mundo nipônico.

Desde que cheguei aqui tinha muita vontade de ir e empurrei com a barriga por preguiça, outros planos etc. A verdade é que a ida exige uma certa preparação material e de atualização com o clima. Cinco dias antes de ir (ou decidir a data da minha ida), comecei a checar a previsão do tempo no topo, para garantir que a subida não seria em condições ruins e que o meu nascer do sol (evento máximo da escalada) estaria garantido. O site da Agência Meteorológica Japonesa se mostrou muito complicado, então fui atrás de sites mais específicos, como o Mountain Forecast ou o Mt. Fuji Climbing. Consegui encontrar uma “janela”, em uma semana que prometia tempo nublado, juntei minhas tralhas e fui.

No trem, a caminho.
Minha programação era: ir de trem (trem-bala + trem normal), subir até a quinta estação de ônibus, começar a trilha por volta de 3 horas da tarde, subir com tranquilidade, passar a noite no topo, ver o nascer do sol, andar um pouco em torno da cratera, descer e voltar pra casa. Consegui seguir de certa forma o que tinha programado, mas os “extras “ são sempre a parte boa da aventura, né?

Existem quatro opções de trilhas para a escalada do Monte Fuji: Yoshida, Subashiri, Gotemba e Fujinomiya.
Trilha Yoshida
As três tem características diferentes: Yoshida começa na cidade de Fuji-Yoshida, é a mais fácil e com mais assistência (muitos banheiros, casas de hospedagem e lojas); Subashiri começa na cidade de Oyama, é coberta por vegetação até a sexta estação e se une à Yoshida na oitava estação; Gotemba é a trilha mais longa, começa na cidade de mesmo nome e tem pouca assistência para quem escala, pelo menos até a oitava estação; Fujinomiya também começa em cidade homônima, é a trilha mais curta de todas, porém a mais inclinada e complicada, além de apresentar poucos locais de assistência.

Para a subida, escolhi a trilha Yoshida e descobri que o nível de dificuldade relatado nos sites não era o mesmo que eu acreditei que fosse. Apesar de serem trilhas, a escalada se faz escalada de verdade em certos momentos. Na Yoshida, o caminho entre a sétima e a oitava estações apresenta trechos de “rock climbing” real, com mãozinha na pedra, bracinhos fortes etc. Apesar de ser em zigue-zague, a trilha Yoshida não deixa de ser inclinada e cansativa também. Cheguei à quinta estação pouco antes das 2 horas da tarde, fiquei um pouco por lá passeando e me adaptando à altitude, iniciei a subida no horário que tinha previsto e consegui alcançar a oitava estação em 3 horas e meia. A beleza de ter começado mais cedo foi, com certeza, poder ver o show de luzes do pôr do sol.

Cajado e suas marcas
Para auxiliar a subida, comprei um cajado de madeira, que é vendido nos pontos de partida para a trilha e mesmo nas lojinhas da subida. Como comprei na estação de trem, gastei cerca de 800 ienes, mas os preços podem chegar a 1.500 ienes, conforme você sobe. A parte legal do cajado é que a cada estação você pode marcar o seu avanço com carimbos a ferro quente. Cada um com um desenho, às vezes até dizendo a altitude, a data e tudo mais. Sendo que o mais importante é, sem dúvida, o do topo, né? E, na volta pra casa, pode saber que você e seu cajado vão ser as estrelas do trem, e todos os velhinhos vão querer saber se você realmente escalou o Fuji-san. Hihihi!

Depois da oitava estação, começou a escurecer e tive que usar minha lanterna de cabeça. Sim, o ideal é deixar as mãos livres por vários motivos, entre eles o apoio nas pedras de alguns trechos e a ajuda na proteção em caso de queda. No escuro, a subida se tornou mais lenta e cuidadosa. Apesar da bênção de ter tido o clima perfeito durante todo o tempo (mesmo tendo checado previsões de tempo nublado) e só ter visto passar longe uma tempestade de raios linda, o vento chegou com força total depois do pôr do sol. E quando digo com força, não estou exagerando; eram rajadas de vento bizarras mesmo. A lua cheia também deu o ar da graça nos últimos metros de subida e compôs cenários maravilhosos, que vou guardar pra sempre na memória.

Às 22 horas cheguei ao topo do Fuji. Depois de ter iniciado a subida muito tranquila e em um ritmo bom, os últimos metros foram uma mistura de sentimentos e, incrivelmente, isso parece ser a experiência de todo mundo que resolve encarar essa aventura sozinho. O cansaço, a escuridão e os obstáculos reduzem mais sua velocidade, as dores começam a aparecer, as paradas pra descanso passam a ser mais frequentes e o fim parece cada vez mais distante. Um amigo relatou de uma forma que descreveu direitinho o que senti; o que inicialmente não tem nada de espiritual, se torna espiritual nas últimas centenas de metros de escalada. Quando tudo se junta, as lágrimas vem, a exaustão tenta te derrubar e ali, no escuro, no silêncio, no vazio, você sente a presença de Deus. Eu senti, esse amigo, quando subiu, também sentiu; acho que todo mundo sente. E eu chorei, rezei, agradeci por ter uma oportunidade tão única, tão especial. Quando veio o topo, não conseguia mais me conter e chorei mais, de alegria, saudade de tanta gente, gratidão. Chorei me sentindo vitoriosa, capaz. Foi uma sensação incrível, que eu compartilhei somente com Deus, minha única e mais que poderosa companhia.

Lua cheia, na parte final da subida
Depois que a oitava estação desaparece sobre o ombro, durante a noite, a nona estação é somente uma ruína abandonada e o topo é deserto. As pessoas só começam a chegar e se acumular a partir das 2 horas da manhã. Antes disso, só os poucos lunáticos (eu). Assim, fui obrigada a passa a noite na porta de uma das lojas, encolhida embaixo do que levei para me proteger do frio e, quando não apagando por pura exaustão, tremendo muito, enquanto o sol nascente não vinha. Esse foi o meu primeiro aprendizado: roupas mais quentes e mais estruturas pra se proteger do frio, se você é suficientemente louco pra resolver dormir no topo. Meu “jeitinho” foi me enrolar na capa de chuva, deitar no chão e me cobrir com uma lona e uma manta que tinha levado, além do meu casaco mais pesado e minhas luvas. Não foi perfeito, eu parecia uma mendiga, mas me salvou de alguma forma do vento cortante. Enquanto no nível do mar a temperatura era de 37 graus, na montanha, a 3.767 metros, a temperatura era de 37 divididos por 10. Enquanto passava frio, acreditei piamente no que li sobre como já é inverno no Fuji a partir de meados de setembro. O fundo da cratera já apresentava até um pequeno (bem pequeno) acúmulo de neve.

Às 3 horas da manhã as lojas no topo abriram. Espertamente, todos começaram a vender bebidas quentes e oferecer refeições. Um detalhe importante sobre a escalada é: levem dinheiro, bastante dinheiro. Apesar de ser possível, como eu fiz, levar comida, dormir no frio e evitar maiores gastos, emergências acontecem, os banheiros são pagos e, na hora do frio, até eu cedi minhas ricas moedinhas por um chocolate quente e abrigo até o céu clarear. Sem contar que a necessidade faz todos os homens, principalmente os que ganham dinheiro com ela; as coisas são extremamente caras durante a subida do Fuji.

Quando o céu clareou, por volta das 4 horas da manhã, tomei meu lugar e fiz valer meu esforço, o frio e a espera. Nunca, na minha vida, tive uma experiência como o Goraiko (o nascer do sol visto do topo do Fuji). É maravilhoso! Eu fui uma das primeiras pessoas no mundo a ver o sol nascer no dia 22 de agosto de 2013.

Goraiko
Depois de passados os meus momentos com o sol nascente no topo do país do sol nascente, resolvi perseguir meu fascínio por vulcões e fui caminhar ao redor da cratera, na trilha chamada Ohachimeguri. Essa trilha também não é das mais fáceis, com algumas partes bastante inclinadas, mas é fascinante poder ver um vulcão ativo “por dentro”. Sempre tive esse fascínio suicida... Acabei escolhendo uma boa pedra, numa parte mais baixa da trilha, bem perto da cratera, pra tomar meu café da manhã e ter mais um conto pros netos. O Fuji tem baixo risco de erupção, mas continua sendo considerado um vulcão ativo e fica no encontro de 3 placas tectônicas, a Euroasiática, a Okhotsk e a das Filipinas (OMG! EU ESTIVE NO ENCONTRO DE 3 PLACAS! *-*). A última atividade do grandão aconteceu em 1707.

Kegamine ao fundo
Depois disso, subi até o pico mais alto do Fuji (3.776m), e consequentemente do Japão, chamado Kengamine. Lá ficava localizado o sistema de radar meteorológico japonês, o mais alto do mundo, e ele podia detectar fenômenos naturais a 800km de distância. Hoje os satélites o substituíram, mas a instalação ainda existe. O vento dificultou tanto a chegada ao pico e o caminho a diante era tão inclinado, que acabei voltando dali, percorrendo só metade da trilha da cratera. Mas valeu. Preferi ter tido só a experiência de chegar ao lugar mais alto e deixar de ser jogada pelo vento ou montanha abaixo ou pro fundo da cratera. Hehehe!

Inicialmente tinha decidido voltar pela Fujinomiya, por ser a mais curta e pra reduzir os gastos da passagem de volta. Mas o vento na trilha da cratera e a inclinação me fizeram voltar para a Yoshida mesmo, que também era considerada a mais fácil. Mas, se ela era a mais simples, eu certamente ia me quebrar muito na mais curta. A descida foi, definitivamente, a parte mais tensa da jornada. Subiria mais mil vezes, se não tivesse que descer nenhuma delas. Certamente a falta de um calçado próprio dificultou muito a minha vida, mas não posso colocar a culpa só no meu tênis, pois vi muita gente cair mesmo com botas específicas. Apesar de não ser muito inclinada, a descida na trilha Yoshida é uma ladeira de pedras vulcânicas soltas, que você precisa encarar cansado e, dependendo do clima, debaixo de sol o tempo inteiro. Resultado: caí 4 vezes, ralei minhas mãos, machuquei e forcei muito meus joelhos, tive queimaduras de sol (culpa toda minha) e, no fim, não conseguia nem mais andar direito. Desci em uma velocidade ridiculamente baixa, levando 5 horas. Além disso, a trilha tem apenas três locais com banheiros e bastante distanciados uns dos outros. Tenso. Mas nada disso apagou a sensação fenomenal de antes.

Na volta pra casa, apesar de cansada, me senti vitoriosa. Escalei a montanha mais alta do Japão e marquei pra sempre no coração o período da minha vida que estou passando aqui. Sou grata ao Japão por me oferecer essas oportunidades únicas. A escalada do Fuji pode não ser “mamão com açúcar”, mas não é extremamente complicada, e a recompensa que recebemos por ela é fenomenal. Recomendo muito essa aventura!



4 comentários:

  1. Que lindo!
    Me senti acompanhando todo seu trajeto e sentindo suas emoções!
    Deve ter sido uma experiência tão única que ainda a deve levar fresca na memória.
    Você é o nosso orgulho daqui, com esse espírito aventureiro e determinado, apesar da aparência dócil e delicada! Eu queria muito ter compartilhado desse momento com você, minha linda, mas é como se eu estivesse lá.
    Lindo relato! Fica pra posteridade, pros filhos, netos...pra história!
    Grande beijo saudoso! =*

    PS: quem tirou a sua foto no trem?
    PS2: foto sensacional do tori com a Lua ao fundo!

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    1. Concordo, Carlos! Essa menina é o nosso orgulho! *__*
      A foto do trem... tô achando que teve o auxílio do banco em frente... Tô certa, Marina? kkk
      No mais, só tenho uma coisa a dizer: fiquei emocionada com o relato, porque o texto (e o que podemos imaginar da experiência) são pura emoção e nos dão a exata sensação do que a natureza pode nos oferecer, sempre que damos chance a ela. Tomara Deus, que nossa estupidez humana possa deixá-la continuar a nos brindar com toda essa maravilha!

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  2. Querida, Papi leu, querida!
    Muito emocionante e, como você já deve saber, T.T ao ver sua felicidade transbordando no relato.
    Só tem uma coisa que eu discordei...
    Lá em cima.... Junto do Cara que você sentiu estar com você.... Logo atrás Dele.... Era eu que estava velando. Ele permitiu que eu o acompanhasse nessa vigília.
    Sua narrativa confirmou tudo o que eu imaginava, portanto, confirmou que Ele permitiu que eu participasse. Obrigado.
    Bju.

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